O Rei da Sorbonne

A professora da cadeira de Teorias da Personalidade seria substituída por um amigo professor com Doutorado na Sorbonne. Ele iria ministrar as aulas durante o período de uma cirurgia e repouso a que a referida professora teria que cumprir, por recomendação médica. Ele (o professor), embora nascido no Recife, estava voltando de Paris para um período de seis meses e, por questão de currículo, contratado pela faculdade durante esse tempo. Desnecessário se faz dizer o quanto havia de devoção por parte da diretoria da faculdade, por conta do título que ele fazia questão de exibir.
No primeiro dia de aula, ele se apresenta com uma roupa formal de grife francesa, mais um belo casaco também francês, de outra grife famosa (o detalhe importante é que o nosso clima é sempre quente), colocou o casaco vestindo a cadeira, com a etiqueta da grife virada para nós, uma turma de 45 alunos, 44 mulheres e um único homem. Depois num discurso descritivo sobre o seu currículo e eu, ao perceber a sua vaidade espumando, sua arrogância de nos comunicar que teríamos a oportunidade de assistir as aulas de um Doutor em Psicologia com a especialização em Teoria da personalidade. No meio do seu afetado discurso, fazia questão de inserir palavras do idioma francês.
Assim seguia todas as aulas: o casaco vestindo a cadeira com a etiqueta à mostra e o esnobismo do Doutor, na tentativa de humilhar a nossa turma. Olhei para minha amiga Mary que, ao observar e decodificar minha inquietude, disse: “Su, não vale a pena, ele com certeza irá te perseguir e prejudicar. não vale apena amiga!”,  e eu concordei com a sensatez da minha amiga; o meu silêncio prevaleceu  com término da aula de exibição do Doutor.  Nunca invente de interromper esse Rei da Sorbonne, confiante em se auto afirmar na sua autoridade especial, afinal ele já é quase um “francês”, não mais um nordestino do terceiro mundo – disse a minha Amiga Mary, no caminho de casa…
Houve um dia em que Mary faltou à aula e eu, a contar e recontar internamente, para não reagir àquela estupidez egoica e habitual do Rei da Sorbonne… Ele a dizer que tinha autoridade e permissão da professora legitima da cadeira, para reprovar qualquer aluno que não correspondesse ao seu “padrão de exigência”, e, numa ameaça sarcástica, disse que a nossa turma estava no nível abaixo das suas expectativas e questionou quem poderia da turma responder o que era o arquétipo? Daí eu levantei a mão para responder o que era um arquétipo?  Ele me olhou espantado e, ainda sarcástico, disse: – “Será que você poderá me dar a resposta certa, já que esta turma até agora, não manifestou nem uma competência, sobre os assuntos brilhantemente abordados por mim?” Eu perguntei se poderia exemplificar um arquétipo. Ele me disse: – “Se você conseguir dar um exemplo correto é melhor do que o conceito”. Foi quando eu lhe respondi: – O senhor é um perfeito arquétipo de professor! Ele, a me olhar irritado e a repetir o que foi que você disse?  – Professor, como pode o senhor com toda a bagagem acadêmica da Sorbonne e não compreendendo a minha exemplificação do conceito arquétipo? A turma toda desabou numa gargalhada… Ele finalizou a aula e olhou para mim, por favor: quero falar com a senhorita – disse raivoso. Como já conhecia aquele olhar de professor, sedento de me perseguir, entendi a falta de Mary naquele momento, a sensatez dela me fez falta…
Depois que todos da turma haviam saído, ele olhou nos meus olhos e disse: -“Você brincou com fogo, mocinha!” E eu prontamente disse-lhe: – Não gosto de brincar com fogo, Doutor, eu pulo o fogo, como se fosse um obstáculo. “Suzete Brainer! Eu vou complicar a sua vida, terei o prazer de reprová-la!” Ao que eu prontamente perguntei: – Doutor professor, o senhor está me coagindo e constituindo, com seu ato covarde, uma ameaça de abuso de poder, sem nenhuma testemunha e achando que eu vou ficar morrendo de medo; facilitar para que o senhor injustamente me prejudique por lhe responder corretamente a sua pergunta na sala de aula? Ele, a me encarar com uma autoridade tão grande, que a sua baixa altura, magicamente tinha aumentado alguns centímetros (o que um Ego não faz?): – “Não vou esquecer que a senhorita fez uma turma toda gargalhar de mim, se prepare que você será reprovada!” No tom bem calmo, eu prontamente lhe respondi: – A manifestação da turma chama-se catarse, professor. Estes três meses aguentando o senhor a fazer piadinhas, desqualificando uma turma inteira, a mostrar o excesso de importância que o senhor pensa que tem, aconteceu o momento da catarse. Doutor professor fique o senhor sabendo que eu também não vou aceitar fácil esta sua vingança. Diferentemente dos alunos a quem o senhor tem ensinado, irei lutar por meus direitos legítimos de aluna ameaçada, meus direitos legais. Sai da sala sem olhar para trás e com a certeza de uma luta renhida e muito chata a enfrentar pela frente. O que está feito, está feito – pensei. O que me restava agora era buscar meios corretos de não ser prejudicada pelo Rei da Sorbonne.
No dia da prova ele fez uma surpresa para a turma toda. A prova seria individual, (algo totalmente contrário ao de costume da professora da cadeira, que sempre realizava a prova em dupla). Mary olhou para mim, sabendo que o vingativo professor planejava. Com este modo individual, ele poderia executar o seu plano de me colocar para a prova final, e assim, poder me reprovar concretamente.
Na aula seguinte, ele devolveu as provas com as notas e – claro – me colocou uma média em que eu estaria para prova final. Quando vi a prova, prontamente comuniquei à turma que o Doutor Professor tinha um plano de vingança para me reprovar, que após aquela catarse de gargalhada da turma, provocada por mim, ele teria me ameaçado com a vingança da reprovação. Ele ficou surpreso com a minha coragem de comunicar a turma, e contra-argumentou que avaliação era a subjetividade do mestre da cadeira e nada disso constituía uma vingança. Foi quando ele conheceu o Leo (único homem da turma), com a sua ironia cortante, levantou-se e disse: “Lamento muito de não ter vivenciado a catarse da gargalhada, quando estou presente na sua aula, ela tem um propósito muito nobre: o de me fazer dormir depois da minha farra da noite anterior. O senhor reprovar a Suzete Brainer é um ato de uma burrice, que deixa a evidência que o senhor comete o crime de abuso de poder e vingança. Isto será de conhecimento de todos.” O professor com muita ironia diz para o Leo: – “Não adianta a sua defesa de paixão por Suzete; eu sou única autoridade para decidir sobre avaliação das provas dos alunos”. O Leo, muito irônico, mestre  em desconcertar qualquer um que lhe provocasse, diz: “Professor, vou lhe dar outro exemplo de arquétipo, eu sou homossexual assumido, o arquétipo do único homem que cursa Psicologia numa turma de mulheres, uma bichona, professor (faz os trejeitos com as mãos), e, por isso, não posso ser apaixonado por Suzete, mas eu a admiro muito, tanto que vou deixar que o senhor direcione a sua vingança para mim. O senhor me reprova e a sua reprovação será adequada, pois eu nunca tiro notas excelentes, assim, ninguém suspeitará do senhor pela minha  reprovação!” A turma toda a gargalhar  e o Leo adorando aquele espetáculo acabando a aula do Rei da Sorbonne, que foi embora com tanta raiva que esqueceu o seu troféu: o casaco na cadeira pela a primeira vez. Eu abraço o Leo e digo que ele quer colecionar reprovações, que ele precisa encontrar um curso que a leve a sério.  Ele olha para mim, me diz baixinho: – “No dia que eu me levar a sério, eu morro, enquanto isso, eu faço alguma coisa boa para pessoas sérias como tu, Su!” Eu emocionada, não digo mais nada…
No outro dia eu vou à coordenação de apoio ao estudante, a qual, nunca teve nenhuma queixa formal contra nenhum professor. Aquele departamento atuava noutras funções e não na função específica que a ele era designada. A Célia, coordenadora muito querida dos alunos e dos professores,  sempre encontrava o bom caminho de dissolver conflitos; na maioria dos casos com prejuízos para os alunos. Quando, ela me escuta a querer fazer um registro de queixa do professor Sorbonne, fica apavorada. Tenta de todas as formas a me convencer de não realizar o registro, situação impossível de acontecer, pois eu estava totalmente decidida. A minha discussão foi com a minha amiga Mary, que quis ser testemunha e levar a prova dela como elemento de comparação, a fim de evidenciar  que a minha prova era melhor que a dela e ela estava com nota bem melhor e já aprovada por média. Célia olha a prova de Mary, constata a má-fé do professor na avaliação, mesmo assim eu não queria que a Mary se envolvesse, mas ela argumentou com toda razão, que já estava aprovada e que a prova dela serviria como elemento fundamental de comparação com a minha, a fim de que os avaliadores percebessem o erro do professor.
No dia marcado da prova final, para nossa surpresa ele diz que a prova será em dupla.  Antes da prova ele me pediu para retirar a queixa, dizendo que aquela ameaça teria sido uma brincadeira dele. Eu lhe disse que levava muito a sério as brincadeiras e por isso não ia retirar. Eu pergunto ao professor se posso fazer a prova individual, pois não queria levar ninguém junto comigo a reprovação. Vânia, que sempre foi uma inteligência superdotada, manifestou a vontade de fazer a prova comigo – uma oportunidade única – pois sempre fiz provas em dupla com a Mary e nunca fomos para a final. Eu fiquei relutante em aceitar, mas ela insistiu muito e fizemos uma excelente prova. Ela me disse que tinha feito à prova anterior péssima, pois tinha ficado com resistência à afetação do professor e não tinha estudado o assunto, mas agora estava preparada e tinha ficado indignada com atitude do Rei da Sorbonne comigo, na avaliação da minha prova.
Ele corrigiu as provas na hora e único dez foi dado à nossa prova.  Não reprovou ninguém, a não ser o Leo que não compareceu à prova. Antes da minha saída da sala, ele me declarou: – “Suzete Brainer, você tem competência e mereceu a nota máxima com a Vânia Bastos, parabéns para as duas!”. E minhas últimas palavras para ele: – Professor a competência é muito maior que resultados, notas e títulos; a competência é nunca perder a ética para se avaliar  imparcialmente as pessoas; não me conformo com o abuso de poder de supostas autoridades em qualquer setor, a cometer injustiças por questões egoicas. Agora irei retirar a queixa, para que seu currículo continue perfeito. Espero sinceramente que o senhor se torne mais humano e menos astro!
No corredor à minha espera estava Mary e Nara (que cursava na outra turma) e, distante, numa cadeira, o Leo no maior sono.
Dedico esta crônica à amizade; àqueles amigos queridos que o tempo e as vicissitudes da vida faz questão de separar, mesmo sendo – como foi – tão bom estarmos juntos. De todos, só a Narinha que me visita neste blog. Aos outros que ficaram na minha memória afetiva, como símbolo de solidariedade tão humana, na dimensão mais sublime que uma amizade pode alcançar, eu desejo uma Paz Profunda e muitas Felicidades, sempre!


Suzete Brainer  (Direitos autorais registrados)
Imagem: Obra de Matisse.

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