O Grito Mudo Na Cozinha

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Sofia estava sentindo o carinho da água que passava entre os seus dedos, enquanto lavava os copos acumulados da festa realizada na noite anterior, na casa da sua patroa. Seus pensamentos pululavam entre cada copo limpo e a lista imensa de afazeres domésticos de hoje. Tinha consciência de que não era fácil o trabalho de uma diarista e, principalmente, no seu caso, uma “diarista pretensiosa” – conforme julgamento de sua patroa -, por cursar filosofia numa universidade pública. Infelizmente a maioria das patroas pensam assim; porém, ninguém sabe das suas noites em claro estudando; da sua vida de enorme sacrifício, tentando equilibrar as poucas horas livres para o estudo, como única forma de superar o destino de ser babá, herdado de sua mãe desde os 11 anos aos 15 anos.  Sofia tinha plena convicção de que só através do estudo deixaria de ser uma babá impedida de sonhar; e que, o sonho pode exceder a pauta de leitura dos contos de fada que era obrigada a ler, para as crianças de quem tomava conta. Nos intervalos, o presente era sempre cocô nas fraldas das crianças.  As mães, segurando os bebês pelos bracinhos, (com a distância regulamentar entre o seu corpo e o da criança), entregavam a Sofia, com um olhar de censura, ao constatar que os seus bebês não eram como suas bonecas, limpinhas. Estavam cagados e este serviço era dela, limpar o cocô das crianças e o cocô dos animais de estimação das crianças. Este cocô representava literalmente e metaforicamente que a sua vida era uma merda. Os presentes: pacotinhos de merda. 

Numa tarde muito ensolarada, fez a promessa que iria lutar pelo seu destino. Mesmo na contramão, continuaria a estudar, principalmente manter o hábito da leitura. Assim, começou a sua curiosidade, fazer as perguntas, obter as respostas, até formatar o sonho de cursar filosofia e um dia virar professora. 

– Sofia, seus pensamentos estão longe… Começou a preparar o café da manhã? Estamos com muita fome. Sabe que o meu queijo é o de ricota e o do seu Carlos é o de “mozzarella,” viu? 

– Claro que sim, dona Heloísa, eu não esqueço isso não. 

– Ok. Dá uma pressinha neste café! 

Rapidamente ela realiza todas as recomendações da patroa, que no final deixa a pressa descansar na sua banheira de espuma. Depois de quarenta minutos comparece à mesa e degusta o seu desgostoso queijo ricota, para que nenhuma gordurinha da sua barriga musculosa tenha algum defeito aos olhos da vitrine social. 

E a Sofia, na segunda etapa, a preparação do almoço. Nesta sequência da rotina do seu trabalho, não existe tempo para filósofa, o suor escorre a cada gesto rápido e preciso para a perfeição de tudo. A patroa, dona Heloísa, não perdoa nenhum deslize. Paga muito bem, até como autoafirmação de classe privilegiada, cuja forma de comunicar a satisfação pelo trabalho de Sofia, é uma excelente remuneração bem acima do mercado. 

A vida de Sofia é muito organizada. No momento, se encontra com a carga horária de trabalho preenchida de segunda à sexta, das 7 horas até as 16 horas e o curso de filosofia na faculdade, à noite. Os finais de semana reservados para estudar e cuidar dos afazeres domésticos em sua casa.  Mora sozinha, perdeu sua mãe há quatro anos, e chora ainda pelo fato de não ter dado uma vida confortável a ela, doméstica a vida toda, cuja saúde foi consumida numa rotina pesada e escrava.  

Quando pensa nas suas três patroas, percebe assim: a dona Heloísa é a relação profissional, sem vínculo amistoso e toda a regra é seguir direitos e deveres, nos três dias da semana que lhe presta serviço e pelo qual recebe uma boa remuneração. Tem a dona Kátia; uma boa patroa, cordial, porém muito exigente e atenta a querer cortar gastos, a ponto de ser às vezes mesquinha com a quantidade de alimentos. A sorte é que Sofia não é gulosa. A terceira patroa é a dona Malu, uma amiga de verdade! Sempre está comprando os livros do curso de Filosofia, tem um prazer enorme de partilhar a admiração pela jornada de vida da Sofia, com os amigos e seus familiares.  

Dona Malu é a pessoa quem ela quer no dia da sua formatura, para fixar nos olhos o registro da sua emoção de vitória, a sua força de mudar um destino condenado a não ter sonhos, agora transformado, conforme a promessa naquele dia ensolarado em que almejou voar.  

Ninguém a incentivou mais do que sua amiga patroa.  Quando a sua mãe morreu, ela deu um apoio de irmã, irmã boa, pois existem irmãs que são piores do que inimigos declarados. 

Lembra sempre dos olhos tristes da sua mãe; nada mudava aquela tristeza inscrita neles; nenhum sorriso era capaz de fazer aqueles olhos realçarem um contorno de leveza no rosto. Sua mãe carregava um rosário de dores da alma, tinha uma dureza nos movimentos dos braços, como um registro de ausência de carinhos, nem dados nem recebidos, desde pequeninha já trabalhava com a carga de um adulto explorado.   

Ela pensou em voz alta: minha mãe nunca pôde nascer criança; esta violência morava na tristeza dos seus olhos. Limpou as lágrimas de prova da divagação dorida sobre o destino de sua mãe e imediatamente finalizou a limpeza do banheiro sofisticado da patroa, suspirando no silêncio daquele espaço amplo, vestido de uma riqueza impressa em cada detalhe, uma beleza arquitetônica projetada para seduzir e não para agredir com a ostentação. Lembrou de dona Heloísa falando aos arquitetos e decoradores: “Não existe nada mais brega do que a ostentação desordenada. Não quero um grito de que eu tenho dinheiro; quero a assinatura de luxo sofisticado, de que eu sei usar o dinheiro”. Eles aplaudiram a fala dela com a admiração e também satisfação; sabiam como iam lucrar com ela, na realização desta assinatura luxuosa. 

Para Sofia os contrastes desta desigualdade social sempre permeavam a sua insônia. Os questionamentos cresciam dentro dela. Sempre chegava à conclusão de que a pobreza, o estado da pobreza era a maior agressão à vida humana; dela vem a violência, o crime, a prostituição, a sustentação do capitalismo selvagem. Isto é fato, a pobreza promove a hiper dimensão do espaço privilegiado da elite. O sono, provindo do cansaço físico de Sofia, tomou conta de suas reflexões e ela caiu em profundo sono. Ainda bem que amanhã é sábado, ela pode dormir até mais tarde; guardava este privilégio com muito carinho. 

Nunca imaginara que o dia da sua formatura chegaria tão rápido. Ela foi aprovada com louvor, as melhores notas e participação excelente nos seminários apresentados em classe. Somente uma tristeza pousava sobre a sua alma, ausência da sua mãe… Esta ausência lhe pesava, diminuía um pouco o brilho do seu esforço em mudar a sua realidade; sem que esta mudança pudesse melhorar a vida da pessoa mais importante, morta com a marca do sofrimento, da mesma forma que nasceu, carente de conforto e ajuda, num corredor de um hospital público.  

Esta situação ecoava tão semelhante à realidade vivenciada por sua mãe na vida toda, um ultraje; um hospital que não proporcionava um simples analgésico, que aplacasse a dor imensa que consumia o frágil corpo de dona Celeste. Esta, sentindo a hora implacável do desligamento afetivo, pegou as mãos da filha amada junto ao seu coração, num último suspiro gritou o nome de Deus. Pela primeira vez, Sofia visualizou um olhar suave de sua mãe, dissolvendo a marca da tristeza que lhe pertencia. 

Na cerimônia da formatura, conseguiu encontrar a sua amiga, dona Malu, simbolizando a sua família, ninguém mais. Para seus irmãos, ela era a “metida a besta”, faziam questão de desprezá-la. Só nas urgências com dinheiro, era cobrada de ter a obrigação de ajudar. Enquanto a sua mãe era viva, ajudava para evitar o desespero maior de dona Celeste. No dia do enterro de sua mãe, resolveu que iria se mudar, mudar também o número do celular, e assim fez. 

Agora o seu grito mudo na cozinha, tinha uma voz que cursava o mestrado, com uma grande esperança de ajudar a mudar a realidade de outras suas iguais, que ousam desafiar o carimbo da discriminação. A educação era o seu passaporte para abraçar a vida com olhar altivo e representatividade na fala.

Suzete Brainer (Direitos autorais registrados).

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