A Pianista do Passado

ThomasWilmerDewing

Luzia sabe que tem uma nota de nostalgia na sua alma, quase um ponto morto de uma tristeza não localizada; pois nunca teve qualquer cicatriz trágica no seu destino. Porém, nos seus olhos tem uma sombra de tristeza, que os mais atentos observam com a categórica declaração: – Luzia, às vezes percebo uma tristeza no seu olhar!

O que ela conhece muito bem é a necessidade de silêncio dentro dela. Algo que sempre a afastou de uma convivência social movimentada; o som de muitas vozes falando ao mesmo tempo, lhe dá a sensação de perda de paz e harmonia; não consegue perceber um propósito, uma interação entre pessoas reunidas que não se escutam.

É muito confortável ficar em casa com sua gatinha preta dormindo no sofá amarelo. Viver a sua digressão, enquanto assiste vídeos de pianistas, numa concentração zen, que preenche todo o silêncio por dentro e por fora, anulando os vazios da sua inadequação social. Nunca tocou qualquer instrumento musical, o piano é sua paixão. Assimila toda a excelência da música executada por seus pianistas idolatrados; hábito que talvez tenha feito desenvolver sua audição aos mínimos detalhes. Consegue perceber afinação, harmonia, melodia, e até a coesão da alma do pianista com a música por ele executada.

Ela é a maestrina desta experiência de reger as notas do Noturno de Chopin, de acalmar a sua mente e o seu corpo, no relaxamento que evoca o sono; e de fazer da sua cama o palco dos seus sonhos, sincronizados às notas do piano…

Tem uma rotina que para a maioria das pessoas parece monótona: trabalha na administração, especificamente na contabilidade. Para ela, existe magia na matemática. Luzia percebe a matemática presente em tudo. A concentração que os números exigem salva-a desta humanidade caótica, em disputa de ser o número da vez em tudo…

Com suas análises precisas, exatas, eficazes na contabilidade administrativa da empresa em que trabalha, conquistou um espaço adequado, uma sala pequena, confortável e principalmente silenciosa. Isolada, realiza a sua pontualidade, exata na hora da chegada e na hora da saída, coerentemente sincronizada com os ditames da sua arte de lidar com matemática.

Muitas vezes escutou pelas costas as piadas de mau gosto, sobre o seu suposto comportamento antissocial, apelidos depreciativos, mas isto nunca a perturbou, sabe estatisticamente o quanto as pessoas são infelizes, munidas de uma violência direcionada para os outros, e quando este outro é diferente, torna-se um alvo fácil e conveniente, da transferência das frustrações dos infelizes.

Quando abre a porta do seu apartamento, tem certeza que ela e sua gata são felizes. O afeto que as une se parece metaforicamente como o fluido de gotículas de uma cachoeira na sua imensidão. Ambas expressando saltitante a alegria de estarem juntas, sem barreiras de comunicação ou qualquer cobrança. A linguagem do afeto tem um curso igualmente o das águas, de expulsar os entulhos colocados, os lixos que poluem a pureza da fonte original. Luzia não consegue ficar cega ao comportamento doentio da sociedade, de macular a natureza, os animais e toda a biodiversidade, motivado apenas pela maldade de destruir, violentar, provocar sofrimento alheio.

Acordou novamente com a lembrança do sonho recorrente em que entra numa sala vazia, tem um piano antigo, ela senta e começa a tocar de forma esplêndida.

Hoje resolveu marcar uma consulta com um psicólogo, especialista em análise simbólica dos sonhos, para entender o significado de sonhar tocando piano, e por que desde há vários anos este sonho se repete. Só que, há dois meses, tem sido acordada quase todos os dias com o mesmo sonho, numa mesma sala, tocando o mesmo piano.

Como o mundo funciona para luzia num espaço matemático, decidiu que faria por dois meses a psicoterapia, mesmo que neste tempo não lhe trouxesse nenhuma mudança. Se, por acaso, acionasse a compreensão e resolução da questão do sonho, seria excelente. Porém, foi muito mais complexo do que ela imaginava, o psicólogo deixou claro que não se resumia a analisar simplesmente aquele sonho, mas a sua vida: a infância, a adolescência, e também o seu momento atual. E esta declaração a perturbou mais do que compreender os sonhos. Afinal, era um sonho agradável, era a realização de um desejo de tocar um piano, igualmente à experiência interior de sentir a música. Diferentemente de retornar a suas recordações sobre a infância solitária, a adolescência incompreendida, num isolamento social. Na terceira sessão de psicoterapia foi decidida a encerrar. Sem comunicar ao psicólogo o real motivo, utilizou do recurso da mentira social, que não disponibiliza mais daquele horário para fazer o tratamento, que quando tivesse condições marcaria novamente. O psicólogo lhe informou que este horário provavelmente não estaria disponível, seria ocupado por outro cliente, mas que ela ligasse quando quisesse voltar e veriam os horários disponíveis no seu consultório. Quando estava saindo da sala, ele lhe disse:

  • – Luzia, você sabe que está interrompendo o tratamento por outro motivo e provavelmente não irá retornar, estou certo?
  • – Sim.

Fechou a porta com tanta rapidez, que não escutou o eco do silêncio do psicólogo, que sabia ler a linguagem dos seus olhos assustados diante à experiência de viver a sua própria vida.

Não retornou a marcar a psicoterapia, mas sentiu que algo quebrou dentro dela, surgindo como uma inquietação no lugar da nostalgia costumeira.

Isto lhe fez quebrar de maneira sútil a sua rotina matematicamente executada. Numa manhã, no intervalo do almoço, fez diferente: Foi fazer um lanche rápido, seguindo um percurso novo que levava a uma sorveteria recentemente inaugurada, num local em que nunca tinha caminhado. Lá, percebeu um pequeno teatro de recitais em frente da sorveteria, atravessou a rua estreita para visitar aquele ambiente do teatro. Não quis acreditar quando entrou, era o mesmo cenário do seu sonho, o piano antigo estava lá. Olhou em volta do espaço, constatou que estava sozinha. Conseguiu pela primeira vez ter uma atitude ousada de tocar o piano que a esperava. Não quis saber das evidências lógicas, de que se nunca teve uma aula sequer de piano, jamais poderia extrair qualquer som que valesse a pena.

Acreditou no seu sonho, foi lá e começou a tocar!

Suzete Brainer (Direitos autorais registrados)

Imagem: Obra de Thomas Wilmer Dewing.

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